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Foto: Gilvan de Souza / Flamengo |
CARLOS EDUARDO MANSUR: Os ótimos públicos pelo país na semana passada, assim como a corrida por ingressos que o Rio viu nos últimos dias, oferecem tanto material para reflexão quanto o vazio de gente e de interesse que marcou boa parte dos Estaduais. É o mundo real batendo à porta. No futebol, definir o jogo que vale, o campeonato que vale, não é mera questão racional. Tem a ver com mobilização popular.
O mundo globalizado periga transformar o futebol numa fábrica de frustrações. Na medida em que suprime fronteiras, torna o mundo menor e também redefine o peso das conquistas. O que é local vale menos, porque treinamos o olhar para enxergar tudo em escala nacional, continental, mundial. E quanto mais se amplia o alcance territorial das disputas, menos vencedores se produzem. Só um time do Brasil ganha o Brasileirão, só um clube em toda a América do Sul ganha a Libertadores. O Mundial, então, parece ter virado propriedade exclusiva de uma elite do planeta.
As finais dos Estaduais, amanhã, provam que o futebol pode ser mais do que isso. Um Fla-Flu, um dérbi mineiro, um Ba-Vi com estádio cheio e taça erguida ao fim de 90 minutos podem produzir uma experiência pronta e acabada que, para ser importante e memorável, não obrigatoriamente precisa ser vista como uma etapa para conquistar o país, o continente, o mundo. Andamos valorizando tanto as vagas em disputas maiores que não desfrutamos o momento. De pequenas alegrias também se vive.
Estaduais são frágeis para sustentar o ano de um time. Mas, neste domingo, especificamente neste domingo, através das decisões, eles se justificam como uma vivência, uma experiência cheia de beleza: rivais históricos duelando por um troféu.
Por trás de um clássico, de um Fla-Flu, está uma rivalidade que ajudou a moldar a própria identidade de cada um dos clubes; por trás deste tipo de jogo há uma memória afetiva, uma tradição, o que em futebol não é pouca coisa. O duelo local cria uma sensação de pertencimento que, por vezes, se perde neste mundo global. O que é da aldeia ainda importa, sim. É um tempero de sabor local, uma afirmação da diversidade num mundo uniforme.
Foi atrás destas sensações, de um reencontro com o que é seu, mas também movido por um jogo que vale taça, que o torcedor fez fila por ingressos. O público decidiu que as finais de hoje valem, sim.
Clubes pouparam jogadores até na Libertadores em nome destas decisões. Em parte, em resposta a tal movimento externo. Mas, fundamentalmente, o fizeram porque perder estes jogos, na insanidade com que se exige resultados no futebol brasileiro, ainda hoje traz consequências e põe cargos em risco. Impossível dizer que não vale.
O risco, o pecado capital, é se abraçar ao anacronismo. Não há apego à história que sustente mais de 100 dias de Campeonato Estadual num mundo globalizado. Hoje, a base política sobre a qual se edificou o futebol brasileiro dá poucos sinais de que em 2018 será diferente. Haverá Estaduais e, novamente, por mais de três meses, espremendo criminosamente o Campeonato Brasileiro, a maior competição do país. É importante impedir que o impacto emocional das decisões ofusque a reflexão sobre o que é preciso mudar. E não é pouca coisa.
Não teremos o mundo ideal, a redução do período dedicado aos Estaduais em 2018. Então, já seria um avanço entender que, embora o calendário lhes reserve 18 datas, não é lei ocupá-las todas. Joga-se demais no Brasil. Nossos times disputam, em média, 20 a 25 partidas a mais do que os europeus. E grande parte da culpa é dos torneios locais.
O regulamento do Carioca é outro óbvio caso de insucesso. Produziu a vulgarização dos clássicos e, pior, sem objetivos esportivos em disputa.
É fundamental, também, viabilizar que os pequenos joguem em seus campos. Pior do que a quantidade de jogos entre grandes e nanicos é realizá-los, semana após semana, nos mesmos campos. Que, claro, ficam vazios diante da overdose. Respeitando parâmetros de gramado e segurança, levar as grandes camisas a cidades e localidades que se veem à margem do jogo de elite pode cultivar paixões, aproximar as pessoas dos nossos clubes. E evitar que a distância prática entre elas e os principais times do Rio seja a mesma que as separa dos gigantes europeus: a tela da TV. E, neste caso, a disputa é desigual.
E é preciso falar do preço. Num futebol cada vez mais excludente, o Estadual pode ser inclusivo: uma abertura de temporada com apelo popular, menos jogos e mais decisões. Um aquecimento.
O festivo reencontro com as tradições da aldeia não pode cobrar o preço de comprometer um ano inteiro de futebol.