REPÚBLICA PAZ E AMOR: Por Marcelo Dunlop
O que levou o novíssimo departamento de futebol, eleito junto com o presidente Rodolfo Landim (1.879 votos), a nomear Abel Braga para o cargo mais importante da nação?
Pode ter sido o simbolismo. Afinal, comemoramos exatos 40 anos da maior alegria que Abelão deu ao Flamengo, ao subir todo errado para marcar Rondinelli no lance mais repetido do Campeonato Carioca de 1978.
Deve haver, claro, outras razões mais práticas.
“Todo técnico, quando assume um novo time, deve trazer a sugestão implícita de que vai reinventar o futebol”, lasca Luis Fernando Verissimo em seu último livro, “Ironias do tempo”, na crônica “Técnicos e lâminas”, antes de completar:
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Foto: Divulgação |
“As razões dadas para trocar de técnico são muitas. O técnico que sai perdeu o ambiente, perdeu a confiança, perdeu a razão – e é sempre mais fácil trocar um técnico perdedor do que um time inteiro. Mas a razão verdadeira é o desejo secreto de que o novo técnico reúna os jogadores no meio do campo, abra a sua sacola e tire de lá de dentro – tará! – um outro jogo. Um futebol inédito. Um futebol que ninguém tem, e portanto invencível. O milagre ainda não aconteceu, mas todo técnico de futebol é uma promessa do futebol reinventado.”
Abel não é treinador de fazer “tará!” para jogadores, e talvez seja esse o principal motivo de seu retorno à Gávea. Seu jeito boa-praça, capaz de cair rapidamente na graça de veteranos e jovens pratas-da-casa, é próximo do perfil dos técnicos mais vitoriosos da nossa história recente, figuras como o velho (ou o novo) Carpegiani, Carlinhos Violino, Andrade, Carlos Alberto Torres (do Brasileiro de 1983), Jair Pereira (Copa do Brasil de 1990) e Jayme.
Nasci em 1978 – coincidência ou não, meses antes do gol de Rondinelli, mas não vou ficar me gabando disso. Uma época em que o Flamengo chegou próximo do milagre, do tal “futebol invencível” que fala Verissimo. Quando a magia envelheceu, no entanto, milagre mesmo era ver um técnico medalhão dar certo no clube.
De 1912 até a Era Zico, parece que a coisa foi diferente. Quando não trazíamos um treinador certeiro, de fazer o Brasil todo babar, a gente formava um aqui mesmo, na relva sagrada da Gávea. Empunhavam pranchetas e bonés no Flamengo estrategistas capazes de botar no chinelo um Churchill ou um Bismarck (o duque alemão, não aquele centroavante, parem de avacalhar.)
O livro do PVC “Escola brasileira de futebol”, já resenhado aqui, é pródigo de exemplos de célebres professores da bola: Flávio Costa, Dori Kürschner, Togo Kanela (que saiu das quadras de basquete para lançar Domingos da Guia), Gentil Cardoso, Fleitas Solich, Zagallo, Claudio Coutinho, todos vencedores.
Eis que, de 1978 para cá (e nada tenho com isso), começamos a colecionar medalhões que vinham, não aguentavam a rotina e se mandavam para outros bancos, deixando muitas vezes o Carlinhos com seus oculinhos e nenhuma saudade. Dá um timaço, anote aí: Antonio Lopes, Telê Santana, Ricardo Gomes, Mano Menezes, Luxemburgo e Autuori; o próprio Abel e Oswaldo de Oliveira; Cuca, Rueda e Muricy. Todos com uma reputação de sagazes cientistas da bola – longe da Gávea, claro. Com exceção do tetracampeão brasileiro Muricy, fora por conta de uma fibrilação arterial cardíaca, os demais sucumbiram aos insondáveis mistérios rubro-negros, e ralaram peito sem faixas importantes.
“Ah meu filho, o Flamengo é muito bonito por fora…”, me disse o Joel Santana, em certa noite de 2001, como justificativa para os mil problemas da Gávea. “Por dentro, a coisa é complicada.”
Joel, como outros prancheteiros rubro-negros, entenderiam bem a descrição de Verissimo sobre a vida errante dos técnicos:
“Ou ele é um salvador ou é um charlatão. Não tem o recurso do meio-termo. Nem o recurso do bom senso. O novo técnico não pode dizer para o time e a torcida que o futebol é um aborrecido jogo de repetição e paciência, decidido, muitas vezes, por um ponta esquerda que nem foi escalado, o Fortuito. Não pode enfatizar que o futebol precisa ser jogado com o pé, sabidamente um órgão tão dispersivo e difícil de controlar que poderia ser do governo. Nem lembrar o fato de que o adversário colocará em campo, perversamente, um time com o mesmo número de jogadores, que também querem a bola, só para nos atrapalhar.”
Salvador ou charlatão? Como será visto o boa-praça Abelão, daqui a 350 dias? Como mestre Verissimo ensinou, vai depender também do Fortuito, das contusões, das tomadas de decisões. E principalmente da inteligência dos que guiam o clube, que oxalá não vejam o treinador como bestial na primeira tacinha Guanabara vencida, nem como besta na primeira derrota para o Botafogo.
Que nossos dirigentes ajam não como impacientes arquibaldos, e sim feito analistas equilibrados, com acesso a números como esses que o PVC soltou outro dia na “Folha” – jogos do Flamengo e Palmeiras em 2018: 68 e 67; jogos do campeão da Libertadores River Plate e do Boca Juniors: 42 e 41.
Para além do nosso insano calendário, o sucesso de Abel ao meu ver vai depender de um aspecto extra-bola: o ambiente no clube e no vestiário. E essa, talvez, seja a melhor justificativa para confiar no novo treinador, um paizão que segura a onda dos jogadores nas vaias e não deixa ninguém baixar a guarda quando o time encaixa.
Pai Abel talvez possa, no fim de 2019, esclarecer certas perguntas que rondam a Gávea há uns 40 anos: por que vários bons técnicos não vinham dando certo? Culpa de dirigentes bananas? Ou de jovens craques presunçosos? Ou era falta de dinheiro mesmo? O que faltará para o Flamengo decolar?
Uma última pergunta, ao estilo Tostines, para Abel decifrar a partir de janeiro: é de fato o bom ambiente que forma um elenco vitorioso, ou bastam vitórias do elenco para o bom ambiente?
Em 350 dias saberemos.