CHUTE
CRUZADO: Pedro Henrique Torre
O
curto trabalho de Abel Braga nesta segunda passagem pelo Flamengo ficou marcado
por breves bons momentos e uma insistência em não se dobrar à enorme qualidade
técnica do elenco. Seria mais fácil dar continuidade ao estilo da equipe
iniciado em 2016, com manutenção da posse, troca de passes, busca por envolver
o adversário. Abel tentou fazer um Flamengo à sua moda e, com isso, ignorou o
talento que tinha à disposição. Criou desgaste desnecessário. Em 30 jogos,
apenas em dois escalou o trio de meias formado por Diego, Arrascaeta e Everton
Ribeiro. A Marcelo Salles, o Fera, bastou uma partida. Com o trio em campo, o
Flamengo subiu o nível de desempenho e teve sua grande atuação no Brasileiro na
vitória de 2 a 0 sobre o Fortaleza, no Engenhão. Tudo ficou mais leve.
Foi
neste ambiente aparentemente oxigenado que o Flamengo entrou em campo para
enfrentar o Fortaleza diante de uma semana tumultuada, recheada de desencontros
fora de campo. Com a atenção voltada para o demissionário Abel e a diretoria, o
time pareceu se ver livre de amarras. Jogou leve, tranquilo. Ofensivo. Salles
poupou Renê e Bruno Henrique e optou pelo trio de meias. Um Flamengo num
4-2-3-1 que buscou sempre o simples. Toques curtos, rápidos, geralmente de
primeira, confundindo a defesa rival. Manutenção da posse, circulava bem a
bola, de lado a outro e agregava o necessário: acelerar o jogo quando havia
espaço. É um trio que se completa: Arrascaeta gosta do passe por vezes longo,
torna tudo mais objetivo. Diego mantém mais a bola no pé, segura até achar
espaço ideal. Everton Ribeiro, em fase esplendorosa, une um tanto de cada
característica. Carrega a pelota, costurando entre adversários, mas tem também
a facilidade do passe.
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Everton Ribeiro em Flamengo x Fortaleza - Foto: Alexandre Vidal |
Um
deles é a facilidade com que o adversário consegue finalizar em frente da área
rubro-negra é uma delas. Bem postado na defesa, o Fortaleza apostava em saídas
com muita velocidade pelos lados, com Marcinho e Romarinho. Mas ao avançar logo
enxergava a possibilidade de penetrar na defesa rubro-negra pelo meio. Há,
geralmente, um clarão em frente à grande área. Dali, André Luis arrematou logo
no início da partida. Cuellar, soberbo na cobertura de espaços, tem de se
desdobrar para dar conta e evitar que a presença rival seja ainda mais
constante. Por mais que fosse bem organizado, o Fortaleza é muito limitado
tecnicamente. Num 4-4-2, o time teve dificuldades para manter a linha defensiva
com a grande troca de passes rápidos do Flamengo. Era quase recorrente ver
zagueiros e laterais olhando de lado a lado o vaivém da bola.
Diante
de tamanho volume, o Flamengo apresentava um futebol que dificilmente não se
traduziria em vantagem. Everton Ribeiro perdeu ótima chance na grande área, de
frente para o goleiro. Diego cobrou falta na trave, enquanto Everton não
conseguiu aproveitar o rebote. E aí veio uma jogada de manual. Pudéssemos
escolher um lance para explicar o talento dos meias, imaginaríamos exatamente
este. Arrascaeta por fora, à esquerda, achou Diego por dentro. O camisa 10
esticou a Everton Ribeiro dentro da área, que fez o jogo andar num genial toque
de letra. Arrascaeta já ultrapassava pela esquerda para cruzar a um Gabigol
livre na pequena área. O toque sutil completou o golaço. Três vezes talento
pelo meio. 1 a 0. Um lance que fez o Flamengo descer ao intervalo nos braços da
torcida.
O
retorno para o segundo tempo trouxe uma equipe rubro-negra ainda com gosto pelo
jogo ofensivo. Em vez de recuar e buscar explodir nos contra-ataques, o
Flamengo voltou a se portar como dono do jogo. Manteve a estrutura e a
movimentação intensa dos meias, com passes curtos, de lado a outro e a
tentativa de arremate vertical. Assim, Everton Ribeiro deixou Cuellar na cara
do gol, mas Boeck saiu bem e evitou que a finalização parasse na rede. Foi
interessante: com o time tão bem organizado ao atacar, o colombiano se sentiu à
vontade para vançar e infiltrar na área, tarefa que muitas vezes cabe a Arão.
Impressionava a facilidade para rondar a área do time de Rogério Ceni. Chateava
a insistência do Flamengo em cometer também erros: a dificuldade para
transformar as chances em gol, liquidando a partida. Assim como os espaços
abertos no sistema defensivo que permitiram, por exemplo, Romarinho avançar
livre às costas de Trauco e cruzar para Marcinho cabecear à queima-roupa para
bela defesa de Diego Alves.
No
geral, porém, foi uma tarde muito feliz do Flamengo sob a batuta de Marcelo
Salles. Intenso, com muita movimentação, troca de passes, jogadas objetivas e
com inteligência. Uma atuação, enfim, compatível com a qualidade do elenco.
Mesmo quando sofreu pressão na saída de bola – uma de suas deficiências –
conseguiu se livrar do problema com competência. Daí a importância de ter peças
disponíveis para alternar estilos entre um jogo e outro. Substituto de Renê,
Trauco sempre encanta pela facilidade com que trata a bola. A qualidade do
passe cresce. Não à toa foi entre o peruano e Arrascaeta, pelo lado esquerdo, o
maior número de troca de passes da equipe: 27 em toda partida. Rodrigo Caio, ao
sempre procurar um passe mais vertical, também apresenta qualidade necessária
que torna difícil a vida de rivais mais limitados como o Fortaleza.
O
segundo gol rubro-negro, uma enfiada de bola de Arrascaeta a Gabigol, não foi
surpresa diante do girar insistente pela área do Tricolor. Ali, o Fortaleza já
havia entendido que teve a infelicidade de encontrar um Flamengo ajustado,
disposto, descansado. Willian Arão manteve a postura de volante, sem configurar
o 4-1-4-1 ao se alinhar com o trio de meias. Assim, apareceu por vezes como
elemento surpresa. Seu jogo cresce à frente e atrás. Marcelo Salles poupou
jogadores ao desmontar aos poucos sua linha de meias, colocando Vitinho e
Berrío aos lados, tentando manter a ofensividade, mas com outro estilo, mais
acelerado. Ficou barato.
O
Flamengo apresentou contra o Fortaleza seu melhor jogo do Campeonato Brasileiro
– talvez o melhor do ano, ao lado da partida contra a LDU, no Maracanã, pela
Libertadores. Em ambos aliou troca de passes com agressividade ao acelerar o
jogo. Envolveu o rival e foi implacável no ataque. Desta vez fechou em 61%* de
posse de bola, teve 20 finalizações e trocou 607 passes. Muito em razão da
escolha do trio de meias. Por duas vezes em 30 partidas, Abel Braga optou por
iniciar a partida com Diego, Arrascaeta e Everton Ribeiro juntos. Venceu o San
José por 6 a 1 e o Vasco por 2 a 0 no primeiro jogo da final do Carioca. Preso
a seus próprios conceitos, ignorou o passado recente do time – em 2018, o
Flamengo que liderou o Brasileiro com ótimo jogo também tinha três
meio-campistas que faziam o time girar a bola. Jorge Jesus, de acordo com
relatos de especialistas que o acompanharam de perto em Portugal, tem
predileção por montar suas equipes em um 4-1-3-2. Se assistiu ao jogo contra o
Fortaleza, pode insistir no que Abel, inexplicavelmente, tentou ignorar. Há
talento para jogar em alto nível. Sim, se pode.
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